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domingo, 30 de janeiro de 2011

Entenda a crise no mundo árabe

Interessei-me em acompanhar algumas análises sobre a chamada "crise no mundo árabe". Achei mais digno de nota do que tudo o fato de as análises terem como pano de fundo a pergunta: "o que os Estados Unidos vão fazer?"

Penso, no entanto, que a maior dificuldade em se lidar com essa categoria política à qual se habituou intitular "mundo árabe" é... a própria categoria política "mundo árabe", às vezes inclusive "mundo islâmico", mesmo que indevidamente. Após o artigo "O Choque de Civilizações" de Samuel Huntington, na revista Foreign Affairs, em 1993, ficou bem tentador categorizar pessoas em blocos grandes, mais manuseáveis tanto do ponto de vista da análise academicista quanto da política externa. Claro que, dentro de um país, ninguém está lá, concordando diariamente com essa classificação, pois, se assim fosse, eu não me pensaria Flavia, e sim pessoa do risco-país 184 (valor do dia 28 de Janeiro de 2011, segundo fonte na internet).

A questão é que Flavia é um conglomerado de forças diversas, que tanto sofrem pressão de elementos externos que não encontram compatibilidade suficiente para serem englobados no conglomerado principal, quanto de internos. Os mais coesos formam algo que se pode chamar "nordestina", "cidadã paulistana", "judia", etc. E ao conjunto total dá-se o nome de Flavia.

Da mesma maneira é o Brasil e os brasileiros, que, como bem sabemos, mas parecem desconhecer por completo vários analistas estrangeiros, não somos "alegres", "fraternos", "cordiais", "criativos", "violentos", "bons de bola", "musicais", nem nada disso. Se assim fosse, nossa música não passaria pela triste crise pela qual está passando, ou nosso futebol, e as empresas que eu mesma atendo estariam exportando criatividade, em vez de reclamar sua falta.

Acredito que, posto assim fica mais fácil de ver o ponto que quero apresentar: as diferenças apontadas são superficiais em relação ao que é uma pessoa humana, um grupo de pessoas, comunidades muito discrepantes vivendo sob a égide de uma instituição que busca ser um território, uma nação e um país simultaneamente.

No caso do Islam, entretanto, o buraco é mais embaixo. Nos sentimos no direito de, em não sabendo nada sobre nenhum daqueles países que adotaram esta religião, cultivar, se não sentimentos, pelo menos sensações relativas a eles, quase sempre desagradáveis, visto que são fruto da incompreensão absoluta misturada com uma certa preguiça em procurar saber, diga-se de passagem. Então, os jornais, felizes com alguma notícia bombástica para dar, dispõem manchetes do gênero "Entenda a crise dos países árabes" porque, afinal, árabe/muçulmano é só uma categoria política que não leva em consideração subcategorias como acesso à informação, nível de escolaridade, acesso à saúde, idade, sexo - ítens também eles categóricos, mas que ao menos indicam diferenças que permitem, por fim, sabermos que estamos falando de pessoas, e não de um bloco manipulável qualquer, a quem este outro bloco incrível chamado "comunidade internacional" (o que será isso, pergunto-me?) vai decidir se invade e mata rápido, se embarga e mata devagar.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Camadas de leitura

Estive lendo agora na grande imprensa uma notícia sobre a proibição dos livros do Paulo Coelho no Irã e o pronunciamento da Ministra da Cultura, Ana de Holanda, dizendo que vai averiguar melhor o caso, pois considera todo tipo de censura "lamentável".  Na verdade, o que me chamou mais a atenção foram os três primeiros comentários que li. Por conta deles, tive vontade de falar aqui com vocês.


Penso que o que torna a nossa capacidade de reflexão difícil de se impor é a mistura - esta, sempre fácil de se fazer - das camadas de leitura que compõem um tema. Por exemplo, as opiniões que eu li mais ou menos enviezam todas elas de uma só vez;  eu gostaria de destacar algumas, para dar a entender melhor o meu ponto de vista:


  • dimensão da qualidade artística: a qualidade dos textos de Paulo Coelho é um tema com foro próprio, ela mesma dividida em dimensões diversas: a) se o texto em si é bom ou ruim; b) se está escrito em boa ou má língua padrão (português "culto"), etc.;
  • dimensão de política exterior: que posicionamento político deve ou não ser adotado;
  • dimensão de política interior: tendo em vista que o Brasil também terá banido alguns livros, que procedimentos poderiam ser adotados em relação ao tema;
  • dimensão da política iraniana em relação a Israel : nem tudo o que o Irã faz pode ser ligado à sua postura sobre esse assunto, delicadíssimo por si só;
Por fim, vou ressaltar aquela dimensão que, a meu ver, torna a matéria menos confusa e mais digna de discussão: a da liberdade de expressão. Neste sentido, proponho um exercício de ponderação. Muitas são as vezes em que decidimos não permitir que nossos filhos vejam, por exemplo, cenas violentas na tv. Não porque não queiramos que eles pensem que o mundo é cor-de-rosa, mas porque consideramos inadequado, acima de tudo, que a tv esteja mostrando aquelas cenas. O esforço conjunto que teríamos que empreender para que ela não as exibisse seria infinitamente maior do que o esforço individual de tapar os olhos das nossas crianças; assim, adotamos o procedimento que nos sai mais facilmente. 

Aí mesmo, nesta simples frase, reside mais de uma camada, vejam só: 
  • nem todas as sociedades se identificam com o afazer individual, com o individualismo;
  • há povos que consideram inaceitável submeter as suas pessoalidades às imposições mercadológicas, como quando, por exemplo, mulheres aparecem semi-nuas ou desnecessariamente insinuantes em anúncios para vender desde casas até pasta-de-dente.
Não estou adotando o banimento de livros como método de educação ideal. Estou, antes, tentando entender por que ainda hoje esta metodologia é utilizada. Onde ou por que estamos falhando em encontrar outras saídas. 

Termino este texto com um convite à reflexão mais profunda: eu penso, sim, que há uma mensagem no Islam que nos chega (uma vez que este que chega ao Ocidente não é a totalidade do que o Islam é), mensagem esta que nós teimamos em não ouvir e, com isso, nos empobrecemos em nossa capacidade de compreender o fenômeno humano.

Mas ainda há tempo de seguir tentando.

sábado, 1 de janeiro de 2011

2011 com um sonho

Feliz Ano Novo, gente!


Desejo a todos nós o bem!


Mas tenho alguns outros desejos, também. São desejos públicos.


Participei hoje – virtualmente – da cerimônia de posse da Presidenta da República, Dilma Roussef. Fiquei contente, para começar, de ser testemunha ocular - e enquanto ainda enxergo bem – de mais um momento histórico, que tem um valor ético para além da moral local (isto é, não importa se a candidata era ou não essa, que uma mulher suba ao Palácio do Planalto é um feito marcante, como o foi a posse do Obama e também a do Lula, claro). Considerei, portanto, uma sorte ter vivido esse momento, se não por nada, por pura sorte, mesmo. Seria detestável viver em uma época onde nada tivesse tido a chance de apresentar uma mudança.


E, claro, a grande beleza é essa. É possível mudar. Estamos mudando, constantemente, e até mais rápido. Estamos em crise. Ela engana, porque também é rápida, dinâmica, camaleônica. Se apresenta a cada hora de uma maneira diferente: simbólica (queda das torres), mercadológica (mercados), informação (wikileaks). Será que é mesmo diferente, uma da outra? Ou serão todas filhas de uma só: crise de valores?


Pensando nisso, e encantada por fazer parte desse momento crítico, literalmente, onde assume a presidência desse incrível país alguém com tantas células parecidas com as minhas, portanto minha conterrânea... não, minha coetânea... não, minha cobiótica - pensando nela e em mim eu quis imaginar que esse governo poderia, se quisesse, fazer um plano de governação baseado em valores. Partilho aqui com vocês essas idéias, que são muito simples em compreensão e também em aplicação; servem para o governo, mas também para a comunidade, para a corporação e para o âmbito privado. Espero que gostem.


GOVERNO DE VALORES
Cada ano trabalharia apenas um valor e todas as suas ações e planejamentos deveriam refletir a escolha feita. Assim, todas as áreas de atuação teriam um valor final pelo qual se pautar, o qual seria também o instrumento de medida do sucesso das operações. Um bem intangível que seria transformado em tangível no final de cada ano.
Se fosse aplicado por outra instância que não a governamental, os prazos poderiam ser definidos de acordo com o escopo próprio. Por exemplo, talvez em uma família os prazos possam ser mais curtos, ou mais flexíveis, dependendo da dificuldade específica de aplicação.


1o. ano: GENTILEZA
Já pensou se todo mundo tentasse ser gentil a maior parte do tempo? Se a gentileza fosse o único trato universalmente aceitável, toda a grosseria cairia por terra. Muitas relações se facilitariam - inclusive as governamentais. O governo poderia conseguir maior governabilidade. Perderíamos memoráveis episódios de horror na TV Senado, Câmara e afins, mas em prol de uma tentativa de compreensão mútua – que, muitas das vezes, é o que basta para que algo saia do papel e evolua para onde tem que evoluir – para fazer o bem.


2o ano: HONESTIDADE
Seria uma conseqüência exeqüível, diante do primeiro ano de treino, por dois motivos:
  1. todos estariam minimamente treinados a atuar mirando um valor, o que levaria as pessoas a sairem um pouco do próprio umbigo e imediatismo;
  2. esse treino, tendo inclusive modificado alguns hábitos antigos, permitiria às pessoas se sentirem mais aptas a responder pelas suas escolhas, o que as levaria a poder optar pela honestidade.
Toda e qualquer relação se beneficiaria do trato da honestidade. Com isto, não estou querendo dizer que não haja ocasiões em que a mentira não parece ser a melhor opção. A vida é muito mais dinâmica do que uma novela e honestidade não é apenas dizer a verdade. Acima de tudo, é rumar na direção deste valor, não o perdendo de vista. Só dizer a verdade pode ser insuficiente, e portanto maléfico, tanto quanto só dizer a mentira.


3o. ano: RESPEITO
Claro que fica mais fácil respeitar quem é gentil e honesto. Bem como é mais fácil também respeitar quando se é gentil e honesto. O respeito é importante, porque permite que enxerguemos no outro aquilo que mais temos dificuldade de ver: o outro mesmo. Em geral, em temos atribulados, corridos e difíceis como o nosso, só temos olhos de ver o que queremos para nós, traçar metas para alcançar aquilo, voltar para casa e dormir para acordar de novo para se salvar desse mesmo rodamoinho. O respeito traz para nossa esfera o outro. O outro tem que entrar. E prepara para o quarto valor, o último do "mandato".


4o. ano: INCLUSÃO
Sim, porque como seria possível pensar em inclusão sem gentileza, honestidade, respeito? Sem valores trabalhados, entendidos, apreendidos, não há inclusão possível. Há ajuda, boa vontade, e mesmo muito trabalho – braçal, mental – de pessoas que percebem a importância desse conceito. Mas, francamente, como é possível que não percebamos todos? Eu diria que apenas porque não nos damos a oportunidade sincera de pensar que amanhã poderíamos ser nós próprios os excluídos. Outro mundo é possível, sem dúvida, e tem que ser melhor que esse. Isto é, tem que incluir todas as pessoas. Todas.


Com essas reflexões, às quais não chamarei, de modo algum, de utópicas, desejo a todos um ano bom, isto é, que sejamos bons para esse ano de 2011.